Thamyris
Carvalho Andrade[1]
Eudemir
Melo da Silva[2]
Regilene
Batista de Sena[3]
Considera-se
que a construção do Brasil foi possível devido à força de trabalho dos negros
africanos durante o período Colonial e sua presença viva ao longo de toda a sua
história. Para
chegarem à condição atual, os negros que se furtaram da escravidão, dando perda
ao seu valor, são os que conseguiram fugir do sistema escravagista correndo
para a liberdade. Deu-se assim a criação dos quilombos. Por não poderem contar
com a justiça legal, usavam suas próprias armas e faziam a sua própria justiça,
em que a luta, dia após dia, era o que garantia sua permanência em vida e a
busca pelos seus ideais.
Analisar
o papel histórico desempenhado pelos quilombos nas diversas sociedades latino-americanas,
em um momento no qual se expandia o modelo capitalista de produção de base no
trabalho escravo, traz condições para perceber que o conceito de quilombo
sofreu deslocamentos. Os estudos questionam, principalmente, três dentre os
elementos constitutivos desse conceito, quais sejam: a fuga, o isolamento e a
diversidade étnica.
As fugas eram um meio atraente de escapar a escravidão: Geralmente
individuais, não exigiam nenhum plano coordenado e oferecia uma perspectiva
sedutora, a da liberdade imediata. Por isso, fora frequentes em todo o período
escravista. (QUEIROZ, 1990 p. 42).
Os
quilombos se localizavam em locais bem distantes e de difícil acesso, tentavam
ficar o mais longe possível de seus exploradores. No Brasil, no estado do
Tocantins, com os quilombolas do Kalunga do Mimoso - TO não foi diferente, esta
comunidade surgiu de um desses movimentos negros e atualmente está situada a
aproximadamente 120 Km de Arraias-TO.
Diversas são as versões sobre a origem do nome Kalunga. Em uma tentativa de
desvendar sua origem, foram trazidas para o diálogo, algumas pessoas da
comunidade, autores e pesquisadores da área. Para (K. J.S.F., 2012), “È sabido
que o nome Kalunga é resultante de uma planta da região”. Oliveira (2009)
partilha a seguinte afirmação:
O nome Kalunga resultou de uma forma de referenciar os moradores por um
comerciante da cidade de Monte Alegre que em suas anotações de venda a prazo,
utilizou o nome de um pequeno riacho que passava dentro da fazenda contenda,
Riacho Kalunga. (OLIVEIRA, 2009, p. 18).
As
versões acima são as mais conhecidas e ditas pela comunidade. Heywood salienta
que:
Kalunga é o nome de um quilombo no estado de Goiás. Em 1993, de 2 a 4
mil negros viviam em 41 comunidades espalhadas por 2,02 mil quilômetros
quadrados em uma região montanhosa próxima a vila de Cavalcante. Esse talvez
seja o mais antigo quilombo habitado permanentemente do Brasil. (HEYWOOD, 2009 p.127).
Nesse
sentido, a produção do conhecimento do povo Kalunga surge de sua organização,
crenças, contato com outras culturas, sendo eles mesmos produtores de seus
próprios conhecimentos.
Busca-se saber como e por quem são produzidas (as práticas culturais),
os eventos que possibilitam sua realização, como se articulam com outras
práticas culturais, seu sentido para quem os produz e consome, as normas, os
valores e os critérios de acordo com os quais são avaliados por aqueles que
estão diretamente relacionados com tais manifestações, bem como a forma de
organização e as atividades necessárias á sua existência. (AYALA, 2003, p. 51).
Dos
costumes, instrumentos e práticas utilizadas pelo povo Kalunga, estão o fogão a
lenha, andar a cavalo, plantar roças (cultivam boa parte da cultura consumida
por sua família, arroz, mandioca, cana-de-açúcar, batata doce e hortaliças),
buscam água no Rio Paranã, ou até mesmo nos córregos mais próximos (na época
das chuvas) e armazenam em grandes e vários recipientes como potes e botijas,
usam canoas de madeira, produzidas artesanalmente pela própria comunidade,
pescam e caçam o seu próprio alimento.
Atualmente
já dispõem de fogão a gás, no entanto, muitas das cozinheiras ainda preferem
manusear o fogão à lenha. Moram em
casas feitas de adobes ou palha, dependendo da condição de cada família. Nesse
contexto Warnier (2003) entende que, as culturas são singulares e,
extraordinariamente diversas e localizadas. “Resgatar
e registrar a forma como essa cultura é repassada vai nos possibilitar
entender, respeitar os mesmos como atores sociais e produtores de sua própria cultura.”
Várias são as atividades que caracterizam suas formas ou modos de viver da
comunidade: á culinária típica, no que pode retratar como características são
as variedades de bolo, tais como bolo de arroz, que é feito a base de fubá de
arroz, e é colocado de molho à noite e no dia seguinte escorrido e pilado o
arroz (no pilão) para obter o fubá; o enroladinho e a peta que são feitos com
polvilho de mandioca. (FARIAS, 2005, p.31).
Cada família costuma produzir o seu
próprio alimento, mas esse processo nos dias atuais já é bastante relativo, as
facilidades de ir e vir à cidade (Arraias-TO) tem aumentado e facilitado essas
trocas, em que cada família já pode optar por produzir ou não o seu alimento.
Algumas famílias possuem suas próprias rodas
de ralar mandioca, são independentes
entre si. Antigamente para ralar a mandioca era utilizado o pau de Angico
(árvore do Cerrado), que era usado como uma espécie de ralo, presentemente, as
comunidades já dispõem de ralos de latão e por vezes optam por ele pela
facilidade de manuseio.
METODOLOGIA
Valeu-se da pesquisa qualitativa, na qual
o pesquisador se compromete com a investigação, indo à comunidade à procura de
dados por meio da pesquisa de campo, para dessa forma exteriorizar como e o quão
importante são estas manifestações culturais existentes até os dias atuais.
Chizzotte (2008), parte da concepção que,
a pesquisa deste modo reconhece o saber acumulado na história humana e se
investe no interesse em aprofundar as análises e fazer novas descobertas em
favor da vida humana. Já para a pesquisa qualitativa o mesmo diz que, por outro
lado não há um padrão único porque admite que a realidade seja fluente e
contraditória e os processos de investigação dependem também do pesquisador,
sua concepção, seus valores e seus objetivos.
A etnografia é um sistema de pesquisa desenvolvida pelos antropólogos
para estudar a cultura sociedade. Etimologicamente etnografia significa
“descrição cultural “Para os antropólogos, o termo tem dois sentidos: (1) um
conjunto de técnicas que eles usam para coletar dados sobre os valores, os
hábitos, as crenças, as práticas e os comportamentos de um grupo social; (2) um
relato escrito resultante do emprego dessas técnicas.” (ANDRÉ, 1995, p. 27).
Já para
Chizzotte (2008), etnografia significa a descrição de um grupo social, deriva
etimologicamente do grego ethos (cultura) + graphe (escrita).
Depois foi utilizado para descrever um grupo cultural. Foi apropriada como uma
antropologia descritiva dos modos de vida da humanidade, e introduzindo como um
modo de descrição social científica de uma pessoa ou uma configuração cultural
de uma população.
Por sua
vez, o levantamento de dados foi norteado como método da pesquisa etnográfica, na
busca por compreender os saberes e fazeres do povo Kalunga, por meio de cada
fala, gravações, gestos, fotografias, e do cotidiano em que foi registrado. As
entrevistas foram semiestruturadas, permitindo aberturas a novos
questionamentos.
RESULTADO
E DISCUSSÃO
No
momento da entrevista com alguns moradores da comunidade Kalunga de Mimoso-
Arraias TO observou-se que boa parte das receitas utilizadas por eles, em
especial a do bolo de arroz, estão guardadas na memória de grande parte dos
moradores.
Colocar o
arroz de molho, buscar lenha, pilar, sessar (peneirar o arroz), pegar água no
rio, de modo a vivenciar todo ou boa parte do cotidiano quilombola.
Tabela 01: Inventário de Referências Gastronômicas
IDENTIFICAÇÃO
DA PRODUÇÃO GASTRONÔMICA
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BOLO DE ARROZ TRADICIONAL
|
FICHA
TÉCNICA
|
Arroz, Óleo de coco piaçaba ou banha de porco, Mel de cana de açúcar, açúcar de rapadura ou a rapadura, Fermento (Extraído a
partir do próprio arroz), Leite
(Pode ser substituído por água),
Água fervente, Água fria
(temperatura ambiente) e tempero a gosto (canela, cravo, erva
doce, sal).
|
Obs.: Depois de pilado e peneirado o arroz, retire uma pequena
quantidade e reserve em uma cuia, (utensílio de cozinha que pode ser usado
como copo ou bacia), por alguns dias (de 3 a 5). O ponto do fermento é quando
ele já esta azedo, para que ele azede mais rápido é só acrescentar um pouco
de caldo de cana. (Entrevista realizada com
A. S. R em 02/04/2016).
|
MODO DE
FAZER
|
Logo no período da manhã, prepare o forno, acendendo-o com lenhas que
tenham grande durabilidade. Segundo o
morador “(D.M. S., entrevista realizada em 02/04/2016) da Comunidade Kalunga
de Mimoso as lenhas são as seguintes, o Timbó e a Araçá”. Deixe a quantia de
arroz desejada de molho na noite anterior ao preparo do bolo, em uma bacia. Você
precisará de um pilão para extrair o fubá. Soque o arroz em um pilão para
extrair o fubá, ingrediente fundamental. À medida que se soca o arroz, o fubá
vai fofando quando estiver desse modo, estará no ponto de sessar. Em uma grande bacia coloque todo o
fubá do arroz e em seguida, acrescente a água fervente e vá mexendo ate
desempelotar, esse processo deixa o arroz bem homogêneo.
Aos poucos vá acrescentando a água fria, o açúcar de rapadura, o óleo
de coco, o fermento tradicional e o tempero a seu gosto. Caso queira mais
doce ou com um pouco mais de sal é só acrescentar. Deve-se mexer a massa
constantemente para que se dissolva completamente. Vá provando e veja se esta
a seu gosto. Após pronto, reserve-a no local de preparo (bacia). Quando a
massa estiver no ponto de ir ao forno, ela começara a pitar (crescer). Quando
nesse ponto unte as assadeiras com folha de bananeira e leve-as ao forno. Não
demora muito e o bolo logo estará assado.
Após pronto vá retirando-as do forno e reserve em um quibano aguarde que
esfrie e sirva- se. A palha de banana deve ser mantida porque a mesma ajuda
na sua conservação.
|
Fonte: Produção dos
autores
As donas
de casa que sabem fazer o bolo de arroz, se valem da sua própria memória, pois quase
não se trabalha a quantidade dos insumos necessários para o preparo, o que
caracteriza uma produção baseada em experimentos e repetições “é tudo de
memória e a gosto”. Outra característica importante é que a comunidade não se
prende a horários. Para eles, o importante é o nascer e o pôr do sol.
O bolo de
arroz compõe a alimentação das famílias há mais de cinco gerações, está no
cotidiano da comunidade e normalmente é produzido para ser ofertado às visitas
e em folias da região para recepção de foliões e entes queridos.
Eu aprendi a fazer esse bolo com a minha
mãe e minha avó. Eu ensinei sim, as meninas quando moravam aqui, me ajudavam a
fazer. (Entrevista J.C.S. em 02-04- 2016).
Essa
tradição é repassada de geração a geração, as mulheres aprendem só de
olhar, e reproduzem em seu
cotidiano. O homem tem papel
fundamental, participa diretamente, procurando a lenha no mato, acendendo o
fogo, buscando água no rio e até mesmo cuidando dos bolos no forno para não
passar do ponto. As mulheres ficam a cargo da preparação do bolo e
direcionamentos das atividades que compõe o seu cotidiano.
As tachas
(fôrmas de assar bolo) eram feitas manualmente, a partir de latas de querosene
e latas de óleo. Nesse sentido observa-se a produção que se passa de pai para
filho, de geração para geração. É dessa forma que se percebe a perpetuação da
prática e a valorização do patrimônio imaterial.
Müller
(2012) afirma que deste modo, devidamente identificados, os processos gastronômicos
tradicionais, possibilitam a reprodução do prato, em concordância com os aspectos
histórico-culturais e técnico-tecnológicos permitindo assim a preservação da
identidade cultural.
Trata-se
de uma forma de reprodução da história e da cultura de uma localidade por meio
da gastronomia tradicional. De modo a ressaltar que a produção do bolo de arroz
feito à sua maneira tradicional é um elemento indentitário de suma relevância para
a manutenção da identidade quilombola.
REFERÊNCIAS
ANDRÉ,
Marli Eliza Dalmazo Afonso de. Etnografia
da prática escolar. Campinas-SP: Papirus, 1995. (Série Prática Pedagógica).
CHIZZOTTI,
Antônio. Pesquisa qualitativa em
ciências humana e sociais. 2.
ed. Petrópolis RJ: Vozes, 2008.
FARIAS,
Rosana Antônio de. Comunidade
Remanescente de Quilombo Lagoa da Pedra: Um estudo de caso. Monografia.
UFT. Arraias, 2005.
HEYWOOD,
Linda. Centros-Africanos no Brasil Central, de 1870 a 1835. Quem é o rei do
Congo? Um olhar sobre os Reis Africanos e no Afro-Brasileiro no Brasil. In:
Mary C. Karash e Elizabeth W. Kiddy. Diáspora
Negra no Brasil. Contexto, 2008.p.125-164, 165-191.
OLIVEIRA,
Suely Dias. A Cultura Negra no processo
de letramento da comunidade Kalunga. Arraias, 2010.
QUEIROZ.
Suely Robles Reis de. Escravidão Negra
no Brasil. Editora Ática, 2 edição. Serie Princípios. São Paulo. 1990
MULLER.
Silvana Graudenz. PATRIMÔNIO CULTURAL
GASTRONÔMICO: Identificação, Sistematização e Disseminação dos Saberes e
Fazeres Tradicionais. Programa de Pós graduação em Engenharia e Gestão do
Conhecimento. Florianópolis. 2012.
WARNIER, Jean-Pierre. A
Mundialização da Cultura. Tradução Viviane Ribeiro. 2. ed. Bauru- SP:
EDUSC, 2003.
[1] Mestre em Turismo,
área de Cultura e Sustentabilidade no Turismo, pela Universidade de Brasília –
UnB. Professora e pesquisadora na Universidade Federal do Tocantins - UFT.
Email: thamyris.andrade@gmail.com
[2] Graduando em Turismo
Patrimonial e Socioambiental pela Universidade Federal do Tocantins. Email: eudemir@uft.edu.br
[3] Graduanda em Turismo
Patrimonial e Socioambiental pela Universidade Federal do Tocantins. Email: regilene@uft.edu.br
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